Entrevista
a ser publicada na edição de sexta (05/07/2013) do jornal Biguaçu em Foco (www.jbfoco.com.br)
Editor
do JBFoco lança seu 2º livro na França
Capa da obra “Parlons Hunsrückisch”. (Foto: Reprodução)
Elaine
Stepanski
Nesta semana, a editora L´Harmattan, de Paris, França, lançou o
segundo livro do editor do jornal Biguaçu em Foco (JBFoco), Ozias Alves Jr, 43.
A obra intitula-se “Parlons Hunsrückisch”(Trad.: Vamos falar Hunsrückisch).
Trata-se de um estudo sobre o dialeto alemão hunsrück, falado tanto na comarca
de Biguaçu (SC) como também no norte do Rio Grande do Sul.
Ozias é autor também de “Parlons Nheengatu”, lançado em 2010, sobre
o idioma tupi moderno hoje falado no Amazonas.
Nesta entrevista, o autor conta os detalhes da obra e faz suas
reflexões.
JBFOCO- Como é que conseguiu publicar dois livros na França?
OZIAS- Em 2004, entrevistei o professor Carlos Amaral Freire, poliglota
que estudou mais de 125 idiomas e que reside no Morro das Pedras, em
Florianópolis.
Em 2005 ganhei o prêmio da melhor reportagem do ano pela
Adjori-SC(Associação de Jornais do Interior de Santa Catarina).
Desde então, passei a frequentar a casa do professor Freire, cuja
biblioteca é fantástica, única, fora de série.
E lá conheci a coleção Parlons, que até então nunca havia ouvido
falar.
JBFOCO- Que coleção é esta?
OZIAS- “Parlons” é uma coleção dirigida por um engenheiro
aposentado chamado Michel Malherbe, interessado em idiomas e que inclusive
viveu certo tempo aqui no Brasil, nos anos 1960 onde trabalhou em construção de
pontes.
Essa coleção foi lançada nos anos 1990. Se não me engano, o
primeiro volume foi o “Parlons” de húngaro, escrito pelo próprio sr. Malherbe.
E desde então, a coleção cresceu. Hoje já foram publicados mais de
400 volumes sobre idiomas e dialetos do mundo inteiro.
JBFOCO- Como são esses livros?
OZIAS- É uma coleção única.
Não conheço nada similar nem aqui no Brasil como também entre as publicações em
outros idiomas.
Os livros são divididos em cinco partes, que são: 1) a história do
povo que fala o idioma, 2) descrição gramatical da língua, 3) conversação com
breves lições iniciais do idioma e frases úteis, 4) cultura, isto é, o capítulo
sobre literatura, música, folclore, dança, religião e outros aspectos e 5)
léxico francês-língua e vice versa.
No catálogo dos livros “Parlons”, há centenas de idiomas da África,
Ásia, Oceania, América do Sul. O foco principal é os dialetos, as línguas
tribais desconhecidas.
Qual o objetivo da coleção? Mostrar aos leitores o mundo dos
idiomas e suas curiosidades.
JBFOCO- Como conseguiu publicar para essa coleção?
OZIAS- Certa vez peguei emprestado, da biblioteca do prof. Freire,
os “Parlons Lapon”, sobre o idioma de um obscuro povo do norte da Finlândia
conhecido como “Lapon” (“Lapão” em português), como se não bastasse ser a
Finlândia um país do extremo norte da Europa.
Li e gostei muito. Comentei com o prof. Freire que no Brasil há
idiomas minoritários interessantíssimos que poderiam virar volumes de
“Parlons”. “Que pena que não tem nessa coleção”, comentei na ocasião.
Ele me disse: “Contate com o editor dessa coleção e sugira um
Parlons sobre o dialeto Hunsrückisch”.
Na época, estava pesquisando esse dialeto falado aqui em Biguaçu.
Eu questionei: “será que vão aceitar publicar um livro de um
obscuro brasileiro?”
Prof. Freire disse: “Tente. Não custa tentar.”
“Mas como é que vou escrever em francês? Eu nunca fui à França. Meu
francês está enferrujado”, hesitei.
“Eu tenho certeza absoluta que você vai conseguir”, disse prof.
Freire.
Essas palavras me encorajaram e consegui encontrar o e-mail do
editor Michel Malherbe. Ele aceitou na hora, para minha surpresa.
E assim começou o trabalho.
JBFOCO- Quando é que aconteceu isso?
OZIAS- Era 2008 ou 2009, não me recordo bem. Comecei a escrever o
“Parlons Hunsrückisch”.
JBFOCO- Mas seu primeiro livro não foi o “Parlons Nheengatu”
OZIAS- Sim, é verdade. Comecei a escrever o “Parlons Hunsrückisch”.
Mas certo dia enviei ao editor Malherbe alguns artigos meus,
publicados no JBFoco ao longo do tempo. Entre os artigos, estava um sobre os
antigos índios tupi de São Paulo e o canibalismo. Este foi o artigo que certa
vez acabou sendo transformado numa exposição no Museu Etnográfico Casa dos
Açores, no balneário de São Miguel, aqui no município de Biguaçu.
Sr. Malherbe, que sabe português por causa da época em que ele viveu
no Brasil, adorou o artigo e perguntou se não poderia produzir um “Parlons
Tupi”.
Foi assim que parei momentaneamente a redação do volume sobre o
dialeto alemão para concentrar-me no livro sobre o tupi.
À medida em que fui redigindo os capítulos, eu enviava por e-mail
ao sr. Malherbe e eis que um dia ele me questionou: “Mas o tupi é uma língua
morta?”
Sim, respondi a ele. “Ah, mas a coleção Parlons só trata de idiomas
vivos, ainda hoje falados”, observou ele.
JBFOCO- E aí?
OZIAS- E aí só sei que botei a mão na cabeça. Ai, minha Nossa
Senhora. E agora?
Estava trabalhando à noite que nem um maluco, agarrado a um grosso
dicionário e a um livro de conjugação de verbos, e o projeto de lançar um livro
na França estava a um fio de ser cancelado por causa desse “pequeno” detalhe: o
tupi é uma língua morta.
Mas foi o próprio editor Malherbe quem deu a solução. Ele observou
que num dos capítulos relatei a história de Pedro Luiz Simpson (1840-1894), que lutou na Guerra do Paraguai (1865-1870) e publicou
“Gramática de Língua Brasília” (1876).
Simpson, que era natural de Manaus, Amazonas, um personagem da
cultura brasileira que o Brasil não conhece, publicou uma gramática do tupi
amazônico, conhecido também como “nheengatu” e que o autor em questão chama de
“brasílica”, isto é, a língua genuinamente “brasileira”.
Sr. Malherbe disse: “Fale sobre o nheengatu”. Então, troquei o
título de “Parlons Tupi” para “Parlons Nheengatu”.
E o livro final ficou assim: 90% de tupi e 10% de nheengatu. Se
compararmos a um bolo nega maluca, ficaria uns 90% de coco e 10% de massa
(risos!)
JBFOCO- O tupi e o nheengatu são a mesma língua?
OZIAS- Boa pergunta. O tupi, aquele dos tempos do Padre Anchieta,
foi falado em São Paulo e Rio de Janeiro até o início do século XIX. O nheengatu,
hoje falado por umas três mil pessoas no norte do Amazonas, é a versão moderna
do tupi, uma evolução dessa língua.
JBFOCO- E o hunsrückisch?
OZIAS- O livro “Parlons nheengatu” foi lançado em outubro de 2010.
Passei a redigir o “Parlons hunsrückisch”, mas uma série de imprevistos fez com
que a redação desse livro demorasse três anos. Só vim a concluí-lo em abril
deste ano (2013).
JBFOCO- E o que aborda neste livro?
OZIAS- É um livro sobre a história do dialeto alemão mais falado no
Brasil. Pela primeira vez em quase 200 anos de presença dessa língua na região
da Grande Florianópolis, publiquei uma gramática desse idioma tal como é falado
aqui. Até então, não havia uma só publicação sobre o assunto. Nem mesmo o
falecido historiador Raulino Reitz (1919-1990), autor de “Alto Biguaçu” (1988),
um “tijolo” de mais de 500 páginas sobre a história da colonização do vale do
rio Biguaçu”, publicou uma frase sequer dessa língua. Neste livro até receitas
de bolo foram publicadas, como também um breve capítulo sobre discos voadores,
mas nada sobre o idioma. Em 10 anos de pesquisa, não encontrei uma só carta
manuscrita nessa língua. Parti literalmente da estaca zero.
E o engraçado dessa história toda é que tive de buscar uma editora
francesa para publicar o primeiro livro sobre o dialeto alemão da Grande
Florianópolis nunca antes registrado. Sequer há uma dissertação de mestrado na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) há sobre o hunsrückisch falado em
Biguaçu, Antônio Carlos e São Pedro de Alcântara. Se existir, deve estar bem
escondido, pois vasculhei tudo. Realmente não encontrei.
JBFOCO- Mas você não pretende publicar esse livro em português?
OZIAS- Eis a questão. Escrevi o livro diretamente em francês. Não
fiz uma cópia em português para depois traduzi-lo para o francês. O motivo é
muito simples: se eu fizesse isso, seria mais outro livro em português não
publicado guardado na gaveta à espera de que, um dia, quem sabe, vai ser
publicado.
Tenho alguns trabalhos que simplesmente não foram publicados.
Publicar livros aqui no Brasil é muito problemático.
JBFOCO- Por que problemático?
OZIAS- É muito simples. Na França, por exemplo, o caminho é o seguinte:
o cidadão escreve seu livro, manda-o para a editora e, se esta aceitar, é ela
quem banca a publicação da obra e, inclusive, paga direitos autorais.
Aqui no Brasil, não. É o autor quem tem de pagar tudo. Ele paga
pela revisão, diagramação, impressão e agora também pela divulgação de seu
livro nas livrarias.
Quer dizer, em palavras simples, seria o mesmo que um funcionário
da empresa, ao invés de receber salário pelo serviço que prestou, fosse
obrigado, ao fim do mês, de pagar para a empresa por estar trabalhando nela.
JBFOCO- Mas por que isso acontece no Brasil?
OZIAS- É o preço histórico da falta de investimento na educação. Na
França, a educação é em hora integral. Os alunos entram às 7h e só saem da
escola por volta das 17h. Passam o dia inteiro estudando, fazendo deveres,
participando de oficinas de música, arte, passeios, atividades
extracurriculares, educação física etc.
Aqui no Brasil, as aulas vão das 7h até 15 para meio dia. Eu
pergunto: como é que vai haver tempo para ensinar português, matemática e
outras inúmeras matérias em tempo tão exíguo?
Português, por exemplo, é uma disciplina que tem de ser dada todo
santo dia. Leitura e interpretação de textos têm de ser atividades diárias.
Como o tempo na escola é pouco, o resultado está aí: 75% da
população adulta brasileira é considerada “analfabeta funcional”.
Que significa isso? É gente que aprendeu a ler a escrever, mas
simplesmente não consegue entender direito que acabou de ler. O “Analfabetismo
Funcional” tem vários níveis, porém o mais comum é o cidadão não entender uma
simples carta.
Por que isso acontece? Por falhas nas escolas primária e
secundária. Não tiveram aulas suficientes de português com doses “cavalares” de
exercícios de leitura e interpretação de textos.
É por essas e outras que se entende como uma comarca de Biguaçu,
com mais de 80 mil habitantes, não tenha uma livraria sequer, nem mesmo um
simples sebo.
JBFOCO- Nenhuma livraria?
OZIAS- Sim, nenhuma livraria. Só existe um parâmetro para se
mensurar a qualidade da educação num país e só este é válido, pois essa insistência do governo de divulgar
que 90 e poucos por cento das crianças e jovens matriculados nas escolas, como
se a simples matrícula fosse o suficiente para mudar o quadro deprimente da
educação no país.
O parâmetro a que me refiro é o das escolas instaladas na região
formarem estudantes bem “formados”, ou seja, que no mínimo aprendam a ler e a
escrever num nível de alguma excelência digna do nome.
Ora, se gerações de estudantes são formadas literamente “nas
coxas”, como se diz na gíria, sem treinamento suficiente de leitura e
interpretação de textos, como, depois de adultos, vão tornar-se leitores de
livros? Como “analfabetos funcionais” terão condições de ler livros? Como pode
desenvolver-se plenamente o mercado de livros com 75% da população adulta
considerada “analfabeta funcional”?
É por isso que sou o “Refugiado Linguístico” (risos).
JBFOCO- Refugiado Linguístico?
OZIAS- Não existe o “Refugiado da Seca”? Não existe o “Refugiado
Político”. Eu sou um terceiro tipo- o “Refugiado Linguístico”, que é aquele que
tem de mudar de idioma para poder ser publicado.
Como não tenho como publicar na minha língua materna, o português,
num país que tem a vergonhosa realidade de 75% da população como “Analfabeta
Funcional”, o retrato mais que explícito de como a educação tem sido tratada
neste país, tive de dar um jeito, no caso, mudar de idioma, para me tornar
escritor.
JBFOCO- Vai publicar outro livro?
OZIAS- Já estou terminando
de redigir o “Parlons Talian”, sobre o dialeto italiano vêneto falado ainda
hoje em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Por falar em Rio Grande do Sul, em cujo interior visitei em 2010
para coletar informações para o “Parlons Hunsrückisch”, ocasião em que conheci
pessoas maravilhosas como Silvesto Schuck, Solange Johann, Mabel Dewes,
coordenadoras da Equipe Hunsrik, uma entidade que visa resgatar o “dialeto”
alemão nativo na cidade de Santa Maria do Herval, também reuni algum material
sobre os falantes do “talian”, como é chamado o italiano “Made in Brazil”.
Também publiquei uma biografia de nosso Leonídio Zimmermann,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Biguaçu (Sintrarubi), que
escreve crônicas em hunsrückisch no jornal Biguaçu em Foco. É gente nossa que
merece toda a divulgação.
Falei de um escritor gaúcho chamado Pio Rambo, que muito tem
contribuído para a divulgação da ideia de se preservar este idioma.
Como posso definir meus livros? São histórias de um Brasil que o
Brasil não conhece. São também histórias de línguas que são tão brasileiras
quanto é o português. São um olhar diferente para um Brasil que deveria olhar
mesmo para si para conhecer sua riqueza desprezada e esquecida.
Conheci uma senhora extraordinária em todos os sentidos. Ela se
chama Ursula Wiesemann, uma linguista alemã otagenária, que trabalhou décadas
no Brasil e foi quem resgatou o idioma indígena Kaingang. Em 2006, ela estava
envolvida no projeto do resgate do hunsrückisch, na cidade de Santa Maria do Herval.
Pois é! Na nossa televisão, dá-se importância a jogadores de
futebol e atrizes de novelas imbecis (o adjetivo serve tanto para as atrizes
como para as novelas).
O Globo Repórter, quando não passa programa sobre dietas, aborda
bichos. Nada contra os bichos, mas não apresentam ao público as histórias do
Brasil dos intelectuais de primeira linha como o citado professor Carlos Amaral
Freire ou da cidade linguista Ursula Wiesemann.
Pelo menos, no meu livro “Parlons Hunsrückisch”, eu lhes faço
justiça para a memória. É verdade que é em francês, mas fazer o quê! Tenho
culpa do Brasil nunca ter se esforçado em oferecer educação de qualidade?!
Como adquirir os livros “Parlons
Nheengatu” e “Parlons Hunsrückisch”
http://www.editions-harmattan.fr/index.asp?navig=catalogue&obj=livre&no=32372&razSqlClone=1
www.harmattan.fr